José Luiz Tavares - Lisbon Blues
Ricardo Riso
A mudança de paradigma na poesia cabo-verdiana atestada por T. T. Tiofe em uma de suas epístolas publicadas no “Primeiro e Segundo Livro de Notcha” em razão de novos caminhos estético-formais, por uma poesia de indagações ontológicas e metafísicas assim consagradas nos “Exemplos” de João Vário, encontra, dentre vários poetas revelados dos anos 1980 para cá, o logro da superação na legítima e autêntica produção poética de José Luiz Tavares.
O livro “Lisbon Blues seguido de Desarmonia” (2008), da editora Escrituras (São Paulo/Brasil), tem posfácio de José Luis Hopffer C. Almada e ilustrações de Fernando Pacheco.
Ao vagar pelas ruas de Lisboa, Tavares apresenta sua cartografia da cidade. Peculiar é o olhar do poeta, de estrangeiro, de “moreno das ilhas”. “A mão que escreve inflama-se” ao passar por diversos lugares, passeios no elétrico, mulheres, turistas, desejos e anseios do poeta beirando o onipresente Tejo. E assim o “poeta duro” transfigura a “agreste matéria” “deste pobre ofício de palavras a que me entrego”.
O extremo rigor com o seu ofício e a exasperação da palavra poética depurada é a busca de Tavares, fazendo da agonia da tessitura poética motivo para explanar com elegância a trivialidade do cotidiano: “Apesar da ignorância da rota desses navios/ que descem o tejo, da mulher que nos subúrbios; os vê passar tão rente à sua mágoa,/ da moça tímida espiando o mundo/ da janela que em breve o escuro virá selar,// ficam bem os sinos esvoaçando sobre a tarde/ de inverno em que busca a justa palavra/ e não vê deus a tua aflição: o que cala,/ o que finge, o que mente – agreste destino/ que te cabe, tingindo pelo clarão da dúvida”.
Exacerbação da linguagem a serviço de uma incessante procura para melhor atingir uma estética rigorosa, inovadora e própria, aliando formas renascentistas, como o soneto, à versificação livre moderna. Para este “arqueólogo da língua”, no dizer de António Cabrita, que faz uso corrente de vocábulos raros e de “palavras que quase só têm lugar nos dicionários do português”, conforme declara Fátima Monteiro citada por Almada: “Entre a tusa e o lumbago arfa, insone, o polegar. O esmalte/ com que disfarça a ciática,/ que mesureiro caronte lho afiança?”. É com essa estética da expressão manifestada pelo requinte da linguagem, por vezes pictórica, que não impede a associação ao vulgar configurando fortes imagens: “A reboque de frases póstumas, num semáforo,/ à rapariga de cu redondo fescenino soneto// prometi”.
Em “Desarmonia” “me entreguei feito escravo do soneto”, diz. Mas para um poeta duro e que “leva a vida em riste” a metapoética é virulenta, o ofício torna-se ofegante transpiração e coerente com a aspereza da “Oficina irritada”, de Drummond, o soneto de abertura deste livro. Tavares demonstra destreza nas aliterações, assonâncias, rimas internas, prosódias, procura transgredir imagens e “busca o incerto elo// que une o tigre e seu modelo (...)// no ser e parecer”. Tal como Drummond, “Eu quero compor um soneto duro”, Tavares afirma que “Não fala esta poesia de coisa casta”. Logo, expandir a rigidez do soneto é uma preocupação constante, seja pela temática: “Flitena, eritema, eczema – pra soneto/ não serão baixo tema?”; seja na inspiração em Drummond: “E agora, josé, estribado vais num/ único pé, para loja e para o café// (...) mas, nas dores que os versos reinventam,// atenção ao metro, que este soneto, apesar/ de louvor ao manco pé, ao bardo aretino/ tira o boné”. Obsessiva é a transgressão do fazer poético e ironiza a rigidez das regras: “em que o metro é o polícia sinaleiro,/ quase divindade que em outra vida/ hei temido (por isso este jeito mesureiro)”.
Lê-se: “digam lá se a poesia fez ou não progressos”. Sim para este multipremiado poeta comprometido com a reinvenção da linguagem, ampliando os limites da poesia com sintaxe e semântica próprias. José Luiz Tavares é um nome incontestável da contemporaneidade e substantivo esse “Lisbon Blues seguido de Desarmonia”.