quinta-feira, junho 28, 2012

Revelar personagens históricos negros durante o Brasil Colônia é fundamental para mostrar a resistência de nossos antepassados, quebrar o estereótipo de que os negros aceitaram passivamente a escravidão...


Sonia Rosa - Quando a escrava Esperança Garcia escreveu uma carta (resenha)

Por Ricardo Riso

Revelar personagens históricos negros durante o Brasil Colônia é fundamental para mostrar a resistência de nossos antepassados, quebrar o estereótipo de que os negros aceitaram passivamente a escravidão e dar o devido valor de destaque a esses homens negros e mulheres negras rasurados da história oficial para a construção de um país justo e que respeite a diversidade étnica de sua população.

Em mais uma caprichada edição da editora Pallas para o segmento infantil, a renomada escritora Sonia Rosa agora apresenta a cativante história “Quando a escrava Esperança Garcia escreveu uma carta”. Trata-se da história real da escrava Esperança Garcia que, em 6 de setembro de 1770, juntou forças e coragem para escrever uma carta para o governador da capitania do Maranhão relatando os maus tratos sofridos por ordem de seu feitor na fazenda onde vivia. Na época a fazenda localizava-se no Piauí, então integrante da capitania do Maranhão.

Com a habitual escrita envolvente, a narrativa de Sonia Rosa apresenta diversos aspectos do cotidiano escravocrata, favorecendo a compreensão das injustiças e dos horrores submetidos aos escravos e escravas. Porém, a grande especificidade dessa história é que Esperança Garcia era uma escrava alfabetizada. Uma das raras mulheres que sabia escrever e ler em seu tempo, como frisa a personagem em dado momento. Esperança Garcia foi escrava em uma fazenda comandada por padres jesuítas da Companhia de Jesus, portanto, deve-se a isso o fato de saber escrever.

Entretanto, o drama, como se o fato de ser escrava já não fosse o maior dos dramas, acontece quando os padres jesuítas são expulsos do Brasil colônia por Marquês de Pombal no século XVIII. Com isso, Esperança Garcia, mulher casada e com filhos, vê sua família ser forçadamente separada de seu marido e filhos maiores. Ela e as crianças pequenas são transferidas para outra fazenda, ou seja, mais uma dispersão na vida dos escravizados, alijados da convivência entre seus entes, comprometendo as relações afetivas. Dispersão e vidas fragmentadas que marcaram e marcam as vidas dos negros nesse país.

Na nova fazenda, a violência física aos escravos torna-se rotineira e não alivia mulheres e crianças, para além do afastamento total da religião católica, a qual Esperança Garcia aprendeu e praticava com fervor. Com isso, o texto revela outra fragmentação imposta aos negros e negras com a dispersão da espiritualidade, na qual a assimilação com o aprendizado forçado da religião do opressor foi vitorioso, levando a personagem a reclamar do descumprimento de preceitos católicos, tais como a ausência do batismo dos filhos e o fato de não se confessar.

Ainda no campo das fragmentações dos corpos e mentes dos negros e das negras, podemos citar o nome cristão da escrava, Esperança Garcia, e o fato de desconhecer o significado de uma canção da língua de seus antepassados africanos que cantava para seu filho, como sua mãe cantava para ela, assim como sua avó cantava para sua mãe. O texto mostra a língua oral de sua etnia diluindo-se com o passar dos anos.

Contudo, uma mulher, ainda que escravizada, que sabia ler e escrever, tinha plena consciência das injustiças e dos malefícios do sistema escravocrata. Sendo assim, não poderia aceitar passivamente a sua vida de adversidades, o que estimulava a indignação, a revolta e o desejo de revelar os seus pensamentos, pois como afirma a personagem: “Saber ler e escrever é uma maneira de esticar, bem esticada, a voz da gente, fazendo com que ela chegue a tempos e lugares distantes, nunca antes imaginados”. Certa do seu comportamento insubmisso, resolve escrever uma carta para o governador e contar o seu sofrimento, a sua indignação e o seu desejo de mudanças. Na carta, dentre outros, relata os maus tratos aos escravos e a vontade maior de conviver novamente com seu marido e filhos.

A partir desse momento, o onomástico prevalece e Esperança Garcia passa a esperar a resposta do governador. A angústia aumenta enquanto a narrativa apresenta o cotidiano da escrava na fazenda. E Esperança Garcia espera a sua resposta, e espera, e espera, e espera...

Esse fato verídico foi descoberto pelo historiador Luiz Mott, posteriormente, por força da Lei nº 5.046, de 07 de janeiro de 1999, ficou instituído o dia 06 de setembro como sendo o “Dia Estadual da Consciência Negra” no Piauí. Além disso, o nome de Esperança Garcia foi dado a um hospital em Nazaré do Piauí, dá título ao Coletivo de Mulheres Negras de Teresina, dá nome a uma maternidade em São João do Piauí e inspira os negros e as negras do estado como exemplo da resistência e conscientização para a erradicação da discriminação racial no estado. Deve-se frisar também que a negra e escrava Esperança Garcia escreveu a primeira carta-petição do Brasil.

Complemento espetacular para a narrativa são as ilustrações da sempre competente Luciana Justiniani Hees, que muito engrandecem o livro, tornando-o uma verdadeira obra de arte. Para finalizar, talvez o maior mérito de “Quando a escrava Esperança Garcia escreveu uma carta” seja o de mais uma vez revelar a importância do ato da escrita para demonstrar as vivências sofridas das mulheres negras, já que suas vozes sempre foram silenciadas ao longo da história, por isso Esperança Garcia valoriza o fato da escrita atravessar lugares e desafiar o tempo, procedimento que depois seria consagrado com o livro “Quarto de Despejo”, de Carolina Maria de Jesus, e com as escritoras negras brasileiras contemporâneas, tais como Conceição Evaristo, Miriam Alves, Cristiane Sobral, Lia Vieira... ou seja, essas escrevivências vêm de longe... Um excelente livro de Sonia Rosa e recomendado para todas as idades.



Quando a escrava Esperança Garcia escreveu uma carta
Autora: Sonia Rosa
Ilustração: Luciana Justiniani Hees
Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2012

segunda-feira, junho 04, 2012

Moral da estória: “muitas vezes o mal vem de quem menos se espera, mas geralmente paga o pobre”.


O Cão, o Gato e o peixe na grelha



Adaptado por Gociante Patissa
Pelo menos uma vez na vida, o Cão e o Gato tentaram levar uma vida pacífica. É que não se justificava mais – entendiam ambos – a rivalidade, quanto mais não fosse pelo facto de habitarem debaixo do mesmo tecto:
– Vizinho Cão, consegue dizer-me a razão de sermos inimigos?
– Para ser sincero, mano Gato, eis uma pergunta que nunca ninguém me soube explicar! Então, mas porquê a pergunta?
– Bem, não é nada de especial. Mas…
– Epá! Acho melhor te afastares. Ir na tua conversa não significa que me apanhaste a pata, fica já a saber!!!
– Lá estás tu, ó Cão, com a tua parvoíce! Por acaso te faz mal conversarmos?
– Digamos que não.

E a conversa continuou entre inimigos, que aproveitavam bem a saída da dona de casa para as compras:
– Você já imaginou, ó Cão, como temos tanto em comum?
– Será?
– Claro! Veja só: andamos sobre quatro patas, temos cauda, a mesma ama, somos solteiros. Então?
– Estamos juntos mas não estamos misturados, ó Gato!
– Para quê usar estas palavras que nem são tuas sequer?

Tanta era a lata do Gato, que ao Cão faltavam argumentos para não acreditar no novo projecto de paz no lar. Perante tão boas intenções, também já cansado de andar aos murros com o “baixinho miau”, decidiu aceitar o pacto. Surpresa, porém, ficou a dona de casa ao notar que, ao contrário do habitual, o Cão e o Gato já não disputavam a apresentação das boas vindas. «Esses gajos devem ter muita fome», pensou:
– Mas vocês ouviram óbito ou quê?
– NÃO – responderam os ex-inimigos.
– Mas não vos parece que há paz a mais nesta casa? Então já não brigam? É como então?
– Bem… temos algo a dizer, avançou o Gato.
– Decidimos acabar com a inimizade de longos anos, cuja origem desconhecemos.
– Têm certeza que é mesmo isto o que querem?
– Sim! – asseguraram.

O tempo passava e melhor se entendiam. A ama só olhava admirada o novo fenómeno, bonito de se apreciar por assim dizer. E sempre que ela saísse, um deles ficava de Oficial-dia. Geralmente, o Cão fazia o papel de protector físico, enquanto o gato era electricista. E num belo dia, enquanto a ama aguardava pelo noivo para um almoço romântico, descobriu ela que algo faltava para os temperos. E:
– Meus amigos, tenho de sair.
– Sim, nossa ama!
– Vocês sabem que nesta casa somos pela responsabilidade.
– Sim senhora! – confirmavam.
– Hoje é vez de quem?
– Do Cão, senhora! – disse o Gato.
– Pois! Meu cãozinho, toma conta da casa e ajuda o Gato.
– Sim. A senhora sabe que sempre fui seu amigo e fiel protector físico.

E dizendo isso, o Cão estendia os braços para mostrar sua mascote de ouro e fingia sacudir poeira no seu fato novo, mais novo até que a gravata.
– Não quero encontrar problemas.
– Sim, senhora. Desde que fizemos o pacto com o Cão, reina tranquilidade – dizia o Gato.

Meia hora depois, com fome e gula o Cão dirige-se ao gato:
– Confrade Gato, tira então um naco do peixe na grelha.
– Caro Cão, não diga isso nem mesmo a brincar.
– Gato, então você acha justo aqui suportar o cheiro do grelhado e estar com fome?
– Não! Roubar é feio e crime.

E nesse puxa e não puxa, a boca do Cão fiacva cada vez mais cheia de água até não aguentar mais. Foi então que pegou na mão do gato, levou-a à grelha beliscando assim boa parte do peixe, o qual comeu num piscar de olhos, enquanto o Gato sofria com a dor da mão queimada.


Ao chegar à casa, a ama reparou a desgraça com o peixe na grelha e chamou ambos para uma conversa dura e rija. O Cão limitou-se a fazer gestos de fino, dizendo que, se ao longo dos anos nunca roubou nada, não seria naquele dia que sujaria a sua reputação por um simples peixe. O Gato, que ainda chorava por causa da queimadura na mão provocada pelo falso amigo, não teve tempo para se defender e foi expulso do lar.

Moral da estória: “muitas vezes o mal vem de quem menos se espera, mas geralmente paga o pobre”.

domingo, abril 15, 2012


Entre Brasil e África: construindo conhecimento e militância



Sinopse
O que foi revelado em "Entre Brasil e África: construindo conhecimento e militância" pode ser visto como o convite à vida feito por uma intelectual comprometida com os princípios da fraternidade e da justiça social. E, ainda, como a demonstração de que na luta (tantas vezes dura) pelo bem-estar de todos a ternura e a inteligência são a maior força de qualquer natureza.
A professora Petronilha Beatriz Gonçalvez e Silva é doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Pós-Doutora em Teoria da Educação Pela University of South Africa, Pretoria, África do Sul. Indicada pelo Movimento Negro foi conselheira da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação, mandato 2002-2006. É coordenadora do Grupo Gestor do Programa de Ações Afirmativas da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

ISBN: 9788571605510
Autor(es): Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva
Ilustrador(es):
Dimensões: 14 x 21 cm - NºPág.: 176

sábado, abril 07, 2012

Experimentações e riscos, acertos e erros de um poeta que merece o nosso acompanhamento.


Maus poetas ou a iluminação sapiente da palavra-lâmina hodierna


Ricardo Riso
O acompanhamento dos proponentes a artífices das artes é um caminho tortuoso, configurado de curvas melindrosas, retas exaustivas, sinalizações turvas por elaborações incipientes, às vezes. Entretanto, trata-se de um exercício de prazer ao descobrir jovens propostos a correr os riscos que a literatura pode oferecer, tendo na palavra poética o desafio da lâmina a descobrir novos caminhos para o encantamento da palavra depurada.
Longo é o tempo para atingir a maturação da tessitura poética, o labor deve ser intenso para buscar a maturação, assim como o comprometimento com as leituras dos grandes nomes impõe-se. Alguns, por autossuficiência ou por não internalizarem a necessidade dessas atividades, ou por falta de talento, costumam precipitar-se e revelam dicções poéticas imaturas e que ainda assim encontram a estampa do livro. Por outro lado, outros agentes, poucos, é verdade, demonstram projetos literários consistentes, audaciosos, de ressignificação da linguagem à procura de novas possibilidades imagéticas e semânticas para o tempo em que vivem, merecedores de leituras criteriosas e atentas, visto que representam o que há de elevada qualidade estética na literatura angolana revelada em livros neste século XXI.
Caso norteador da melhor poesia angolana contemporânea que aqui propomos é o de Abreu Paxe e o seu poemário “O Vento Fede de Luz”, livro que reúne uma linguagem de pura inquietação, “com palavras lavra o corpo”, de sintaxe ímpar, de agilidade estonteante e desestabilizadora pela ausência de pontuação como de conectivos; imagens díspares e insólitas sobrepondo-se de forma ininterrupta, valorizadoras da fragmentação metafórica muito bem elaborada pelo poeta; vocábulos aparentemente dispersos, escrita automática em rico diálogo surrealista, “(...) na intimidade equilibrando horizontes/ no vértice/ da luz sol/ pedra no adro da alma/ sob o mesmo chão o escândalo de pálpebras/ move-se nos sensores/ traduz alguma matéria-prima”; de profunda ressemantização da palavra a rearranjar os sentidos explicitados de forma recorrente por expressões desveladoras do processo de estagnação sociopolítica de nosso tempo, mas que pela escrita incisiva do poeta “transformam o século sem músculo em poesia seguinte”.
A tessitura árdua de Abreu Paxe, “reinventando o silêncio” “duma fala invariavelmente ausente” mostra o comprometimento de um poeta inconformista que faz do labor criativo e radical o espaço para aguçar a percepção, trazer o conflito com a certeza, assim como recapturar o desejo de revelar “sonhos indecifráveis”. Seguidor da poesia simbolista, dos surrealistas e dando continuidade oxigenizante, por sinal também inovadora, à poesia de transformação, de riscos criativos tão fecunda em Angola na linhagem de Jorge Macedo, Lopito Feijó, José Luis Mendonça, E. Bonavena, João Tala, Trajanno Nankhova Trajanno, João Maimona e Fernando Kafukeno. A complexidade metafórica dos poemas e as intencionais imprecisões da linguagem nas experiências estético-formais trazem dinamismo incomum para o livro de Paxe e apresentam os questionamentos angustiantes de um cotidiano cada vez mais insensível e inócuo. Uma publicação de plena maturidade plástica, situando-a entre o que há de melhor neste século e desde já o justo posicionamento entre os clássicos da literatura angolana.
A exposição das contradições de seu tempo, o descortino do desassossego da contemporaneidade por meio da palavra poética reveladora e insurreta contra a suposta impossibilidade do homem agir, encontra espaço cativo na poesia de maturação e impressionante conseguimento estético de Nok Nogueira. Este jovem poeta possui uma obra de profunda inquietação existencial, de crítico olhar aos dilemas ontológicos de seu tempo e de indagações metafísicas, de filiação e de continuidade ao sistema literário angolano no que diz respeito às trajetórias poéticas de Trajanno Nankhova Trajanno e Adriano Botelho de Vasconcelos, para além do rigor estético-formal de divisões em cadernos, do domínio do ritmo para a prosa poética em incessante procura pela palavra depurada constatada após a estimulante leitura de “Jardim das Estações” e de “As Mãos do Tempo”, este ainda no prelo. Este poeta atingiu a maturação necessária para a percepção do instante poético que configura o caráter atemporal da poesia, só para recordar Octávio Paz, a partir da observação arguta e de extrema sensibilidade do Homem, assim plasticamente resolvida: “quando for a vez dos poetas anunciarem a travessia do vento estaremos diante da periferia de nossas vidas para que as palavras nos soem à musicalidade entretanto mais ninguém se esquecera de acentuar sua própria fala e doá-la a quem a quis ouvir por inteiro em passos cerimoniais e em praças municipais quem aprendeu com isso foram as flores e as aves dos campos quem subscreveu diante de nossos olhos foram os próprios homens quem se apresentara diante de nós foram as próprias canções quem se fez ouvir não só interrogara sobre a guerra mas os efeitos da paz quem se entregara ao bailado de carnaval foram as dançarinas do Marçal quem se ergueu de lembranças foram os Invejados e as besanganas quem se prostrou diante do nascer do trigo do pão e da flor foram as crianças”
O profícuo e caudaloso experenciar poético de Nogueira registra o seu nome como um representante consistente da renovação na literatura angolana. Nok Nogueira demonstra coragem para remoer o tempo que lhe coube viver, lirismo para tratar as questões agonizantes que nos afligem na contemporaneidade. Nogueira é Poeta por Excelência. Aqui, a sua ESTAÇÃO PRIMEIRA (as cinzas do tempo levam-nos a catalogar o sorriso): 1. não virei amanhã para que me não despeça  de ninguém que tenha amado um dia  a noção de ausência abala as estações das flores todas as despedidas entardecem pelo principiar da voz da canção as lágrimas envelhecem-nos ao tamanho do grão de areia que vimos pisando enquanto sentirmos a presença das estações em nossas veias como um nobre testemunhar de alegorias passadas nada espero de vós no dia em que decidir visitar a longevidade das canções porque nobre é a voz do poema quando entregue à Vida experimentar o sorriso como um preciso exacto instante de prazer ainda que não sejamos nós mesmos a sorrir por nós a tempo inteiro não espero encontrar na fronteira do caminho uma mão estendida solicitando-me o pouco do que ainda resta de minhas palavras as palavras são outras na extremidade da fala dos homens a voz dos poemas será outra os dias nascerão distintos dos outros cada mãe aconchegará seu filho e oferecerá suas tetas à terra até que a última gota de leite caia seca sobre as cinzas do tempo e se faça nova mente o clarear dos dias em nossas tristes avenidas se alguém quiser se despedir de si terá de o fazer não nos cemitérios mas no umbral dos céus onde suposta mente ainda se deixam ficar muitos dos que nos acenaram ontem a paz com as mãos vazias ao léu”.
Expressão paradigmática ao assumir os desafios da tessitura poética concomitante às denúncias de seu tempo estão presentes na obra do perscrutador da palavra, Pombal Maria. No seu livro “Palavras Lavradas” deparamo-nos com uma subversiva proposta estética dentro do sistema literário angolano ao aproximar-se da visualidade do concretismo, ou melhor seria neoconcretismo brasileiro. De Angola, visualização dialogante com Lopito Feijóo e Frederico Ningi. Maria explora a radicalidade de ler/ver os seus poemas com inovações sintáticas e semânticas, desconstrução morfológica e variação tipográfica, trazendo o componente visual aos poemas e a consequente abolição da linearidade dos versos. Uma poesia que vale pela ousadia extrema como demonstrada em “1ma cruz entre os ver-sos de interrogações”, de interessante ressemantização com versos de Lopito Feijoó, assim como a visualidade muito bem atingida no poema “Estranho Naufrágio”, para além da extrema ironia de “Poema invisível na lavra de palavras”, em que a suspensão do discurso favorece o desarranjo e a impossibilidade da leitura se dá com os diversos sinais de pontuação constituintes do poema, o que demonstra a necessidade de se buscar uma nova forma de discurso para a poesia.


Ainda que se apresente titubeante em alguns momentos, a coragem da subversão da linguagem exigindo do leitor participação ativa para a leitura dos poemas, como se somente a radicalização da linguagem seria possível em um mundo patrulhado e de cerceamento democrático, principalmente no campo da cultura quando outras propostas desafinam a ordem vigente, muito bem representada no poema “Diálogo dos Mudos”, posicionam este “Palavras Lavradas” de Pombal Maria em um novo paradigma para a poesia produzida em Angola. Experimentações e riscos, acertos e erros de um poeta que merece o nosso acompanhamento.
Nome incontornável ao processo de renovação da literatura angolana e um dos melhores da atual geração, caso de Ondjaki. De imensa inserção nos meios literário e acadêmico do Brasil e de Portugal, galardoado nestes países e em Angola, com mais de uma dezena de livros publicados, seus títulos romperam as fronteiras do mundo lusófono e já foram traduzidos para países como Itália, Cuba, Espanha, Suécia, Sérvia e Polônia, Ondjaki é o mais prestigiado escritor de sua geração e passeia com desenvoltura e correção por diversos gêneros literários. Questionar o seu talento é de uma cegueira injustificável. Pode-se questionar, e questiono, a enorme inserção no mercado editorial brasileiro enquanto outros escritores de inegável valor dos anos 1980 e 1990 permanecem inéditos no meu país. Entretanto, essa observação não pretende de maneira nenhuma desprezar o ótimo contador de histórias que evolui a olhos vistos e de merecedora citação os livros “O Assobiador” e “AvóDezanove e o segredo do soviético”. Na poesia, o multifacetado autor percorre um interessante, também ousado e perigoso caminho ao aproximar-se das inovações propostas na poética de Manuel de Barros. A renovação da linguagem por meio de um projeto de extrema sensibilidade para observar o homem e as suas contradições, encontra sua linhagem na língua portuguesa em nomes como Guimarães Rosa, Mia Couto e Luandino Vieira. Ondjaki percorre a trilha aberta por esses grandes nomes, o que valeu uma generosa crítica de José Castello acerca da edição brasileira de “Há prendisajens com o xão”, da qual não concordo do seu conteúdo por identificar ainda uma tessitura poética incipiente na sua “despalavreação”, de ligação excessiva ao mestre assumido pelo poeta, Manoel de Barros.
Contudo, Ondjaki é cultor da palavra-lâmina, logo há uma nítida evolução no poemário seguinte, "Materiais para a confecção de um espanador de tristezas” (2009), no qual o poeta dá continuidade ao seu projeto inspirado em Barros e começa a apresentar sua própria sintaxe, caminhando a passos largos para o amadurecimento já revelado na prosa, valendo-se de uma criativa ludicidade frutificada em poemas de pura emoção e devoção aos artífices da língua portuguesa, como em “intimidar o poema a ser raiz”: “era um poema lateral aos sentidos./ ganhava formato ébrio/ ao nem ser escrito./ longe dos pensamentos/ imitava uma pedra/ [aí as palavras drummondeavam]./ longe das lógicas/ – com tendência vagabunda –/ o poema driblava lados avessos/ de noites/ e animais/ [aqui as sílabas manoelizam, barrentas]./ mas uma estrela nunca brilha/ tão solitária;/ encarece-se também de luuandinar,/ miar à couto,/ esvair-se para guimarães.../ era um poema carente de afectar-se/ a ramos gracilianos./ assim alcançava/ o estatuto/ de raiz./ cheirado, emitia brilhos tímidos/ – fosse um pirilampo.”
Eis aqui uma pequena amostragem na humildade percepção minha, ainda que restritiva da poesia angolana dada a estampa do livro neste século XXI. Restritiva por não ter acesso a maior quantidade de poetas e preocupante pela impossibilidade de não registrar uma poetisa pelo desconhecimento das novas agentes, simplesmente. Ou seja, uma intervenção menor no debate diante da grandiosidade das propostas poéticas dos quatro nomes aqui expostos, autênticos cultores da palavra-lâmina, que certamente terão seus nomes no mesmo pedestal dos melhores escritores angolanos.