Sonia Rosa - Quando a escrava
Esperança Garcia escreveu uma carta (resenha)
Por Ricardo Riso
Revelar
personagens históricos negros durante o Brasil Colônia é fundamental para
mostrar a resistência de nossos antepassados, quebrar o estereótipo de que os
negros aceitaram passivamente a escravidão e dar o devido valor de destaque a
esses homens negros e mulheres negras rasurados da história oficial para a
construção de um país justo e que respeite a diversidade étnica de sua população.
Em
mais uma caprichada edição da editora Pallas para o segmento infantil, a
renomada escritora Sonia Rosa agora apresenta a cativante história “Quando a
escrava Esperança Garcia escreveu uma carta”. Trata-se da história real da
escrava Esperança Garcia que, em 6 de setembro de 1770, juntou forças e coragem
para escrever uma carta para o governador da capitania do Maranhão relatando os
maus tratos sofridos por ordem de seu feitor na fazenda onde vivia. Na época a
fazenda localizava-se no Piauí, então integrante da capitania do Maranhão.
Com
a habitual escrita envolvente, a narrativa de Sonia Rosa apresenta diversos
aspectos do cotidiano escravocrata, favorecendo a compreensão das injustiças e
dos horrores submetidos aos escravos e escravas. Porém, a grande especificidade
dessa história é que Esperança Garcia era uma escrava alfabetizada. Uma das
raras mulheres que sabia escrever e ler em seu tempo, como frisa a personagem
em dado momento. Esperança Garcia foi escrava em uma fazenda comandada por padres
jesuítas da Companhia de Jesus, portanto, deve-se a isso o fato de saber
escrever.
Entretanto,
o drama, como se o fato de ser escrava já não fosse o maior dos dramas,
acontece quando os padres jesuítas são expulsos do Brasil colônia por Marquês
de Pombal no século XVIII. Com isso, Esperança Garcia, mulher casada e com
filhos, vê sua família ser forçadamente separada de seu marido e filhos
maiores. Ela e as crianças pequenas são transferidas para outra fazenda, ou
seja, mais uma dispersão na vida dos escravizados, alijados da convivência
entre seus entes, comprometendo as relações afetivas. Dispersão e vidas
fragmentadas que marcaram e marcam as vidas dos negros nesse país.
Na
nova fazenda, a violência física aos escravos torna-se rotineira e não alivia mulheres
e crianças, para além do afastamento total da religião católica, a qual
Esperança Garcia aprendeu e praticava com fervor. Com isso, o texto revela
outra fragmentação imposta aos negros e negras com a dispersão da
espiritualidade, na qual a assimilação com o aprendizado forçado da religião do
opressor foi vitorioso, levando a personagem a reclamar do descumprimento de
preceitos católicos, tais como a ausência do batismo dos filhos e o fato de não
se confessar.
Ainda
no campo das fragmentações dos corpos e mentes dos negros e das negras, podemos
citar o nome cristão da escrava, Esperança Garcia, e o fato de desconhecer o
significado de uma canção da língua de seus antepassados africanos que cantava
para seu filho, como sua mãe cantava para ela, assim como sua avó cantava para
sua mãe. O texto mostra a língua oral de sua etnia diluindo-se com o passar dos
anos.
Contudo,
uma mulher, ainda que escravizada, que sabia ler e escrever, tinha plena
consciência das injustiças e dos malefícios do sistema escravocrata. Sendo
assim, não poderia aceitar passivamente a sua vida de adversidades, o que
estimulava a indignação, a revolta e o desejo de revelar os seus pensamentos,
pois como afirma a personagem: “Saber ler e escrever é uma maneira de esticar,
bem esticada, a voz da gente, fazendo com que ela chegue a tempos e lugares
distantes, nunca antes imaginados”. Certa do seu comportamento insubmisso,
resolve escrever uma carta para o governador e contar o seu sofrimento, a sua
indignação e o seu desejo de mudanças. Na carta, dentre outros, relata os maus
tratos aos escravos e a vontade maior de conviver novamente com seu marido e
filhos.
A
partir desse momento, o onomástico prevalece e Esperança Garcia passa a esperar
a resposta do governador. A angústia aumenta enquanto a narrativa apresenta o
cotidiano da escrava na fazenda. E Esperança Garcia espera a sua resposta, e
espera, e espera, e espera...
Esse
fato verídico foi descoberto pelo historiador Luiz Mott, posteriormente, por
força da Lei nº 5.046, de 07 de janeiro de 1999, ficou instituído o dia 06 de
setembro como sendo o “Dia Estadual da Consciência Negra” no Piauí. Além disso,
o nome de Esperança Garcia foi dado a um hospital em Nazaré do Piauí, dá título
ao Coletivo de Mulheres Negras de Teresina, dá nome a uma maternidade em São
João do Piauí e inspira os negros e as negras do estado como exemplo da
resistência e conscientização para a erradicação da discriminação racial no
estado. Deve-se frisar também que a negra e escrava Esperança Garcia escreveu a
primeira carta-petição do Brasil.
Complemento
espetacular para a narrativa são as ilustrações da sempre competente Luciana
Justiniani Hees, que muito engrandecem o livro, tornando-o uma verdadeira obra
de arte. Para finalizar, talvez o maior mérito de “Quando a escrava Esperança
Garcia escreveu uma carta” seja o de mais uma vez revelar a importância do ato
da escrita para demonstrar as vivências sofridas das mulheres negras, já que
suas vozes sempre foram silenciadas ao longo da história, por isso Esperança
Garcia valoriza o fato da escrita atravessar lugares e desafiar o tempo,
procedimento que depois seria consagrado com o livro “Quarto de Despejo”, de
Carolina Maria de Jesus, e com as escritoras negras brasileiras contemporâneas,
tais como Conceição Evaristo, Miriam Alves, Cristiane Sobral, Lia Vieira... ou
seja, essas escrevivências vêm de longe... Um excelente livro de Sonia Rosa e
recomendado para todas as idades.
Quando
a escrava Esperança Garcia escreveu uma carta
Autora:
Sonia Rosa
Ilustração:
Luciana Justiniani Hees
Rio
de Janeiro: Pallas Editora, 2012